quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Escutatória- Rubem Alves




Sempre vejo anunciados cursos de oratória.
Nunca vi anunciado curso de escutatória.
Todo mundo quer aprender a falar.
Ninguém quer aprender a ouvir.
Pensei em oferecer um curso de escutatória.
Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil.
Diz Alberto Caeiro que 'não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma'.
Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas.
Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.
Parafraseio o Alberto Caeiro: 'Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma'.
Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.
Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação maisconstante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64.
Contou-me de sua experiência com os índios.
Reunidos os participantes, ninguém fala.
Há um longo, longo silêncio.
(Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as idéias estranhas).
Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial.
Aí, de repente, alguém fala.
Curto. Todos ouvem.
Terminada a fala, novo silêncio.
Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais, são-me estranhos.
É preciso tempo para entender o que o outro falou.
Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades.
Primeira: 'Fiquei em silêncio só por delicadeza.
Na verdade, não ouvi o que você falou.
Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala.
Falo como se você não tivesse falado'.
Segunda: 'Ouvi o que você falou, mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim.
Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou'.
Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo.
O longo silêncio quer dizer: 'Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou'.
E assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora.
É preciso silêncio dentro.
Ausência de pensamentos.
E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.
Eu comecei a ouvir.
Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.
A música acontece no silêncio.
A alma é uma catedral submersa.
No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada.
Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.