Enquanto caminhava, olhava tudo ao redor e se incomodava com todo o barulho na cabeça e o silêncio no coração, não conseguia entender como todas aquelas pessoas no parque, sentadas com crianças, cachorro e família, falavam tão abertamente de sentimento, se tocavam e sorriam sinceramente e, ali, dentro do peito, um bolo surdo e oco, ocupava espaço de um órgão sem utilidade, entendia que o coração era nada além de um bombeador de sangue, sensação nada espirituosa pra uma tarde cheia de sol e sentimentos dos que passavam, um egoísmo que manchava a cena.
Quieta, tentava em vão tatear a grama, olhar o céu, puxar o ar, mas era tudo tão orgânico, que chorou, baixinho, aquele choro verde de inveja, escorreu o sal na boca, mas era sal, passava a língua e limpava tudo, uma lambida de pára brisa, nada por dizer ou fazer. Correu o dedo nos lábios, abriu a boca bem mansinho, de um jeito que só conseguia fazer quando estava ensimesmada, chegou nos dentes e lembrou de como seu sorriso era largo, uma expressão máxima da antítese de sua alma, ficou alguns instantes naquele movimento impiedoso, pra ver se doía ao menos, mas a dor também não queria aparecer, parou.
Em sua mão, pequena e tímida, tinha uma gota de sangue teimosa, imóvel, gorda e vermelha que a fazia lembrar que vivia, mas não sentia, olhou para o lado, ainda incomodada com a cabeça barulhenta e viu uma rosa, branca, sempre a rosa branca, nunca vermelha, andou até lá bem perto pra tocar, roubar pra si a beleza daquela solidão, a paz do silêncio, impressão injusta sobre a flor, queria sentir raiva, mas nem isso saia do peito, sentou e continuou olhando, a mente então voou.
Sem esforço, sem espasmos, olhou a flor, o parque em volta e não via ninguém, estava imersa em outro mundo, paralisada na lembrança do gozo, gozar com alguém, sensação nova e tão assustadora, inexplorada e cheia de culpa, uma culpa que também não sabia dizer de onde vinha, tremia e ria, desejava de novo aquele momento, como uma criança que quer bolo quente, vai queimar, passar mal, comia escondido, mas queria mais, parada por algum tempo pensou, pensou e viajou ainda mais em sua imaginação. Ganhava asas.
Suas asas tinham cor da noite, pegaram o caminho errado, a levaram pra um tempo que teimava em voltar, mesmo ela suplicando por esquecer, um tempo de mentiras, era um mar, as ondas vinham fortes, como no fim do dia, batiam em seu rosto, pra marcar, era hora de enfrentar, profanou o amor tantas vezes, usou essa palavra santa em vão, como se nada fosse, proferiu tantas vezes, pra tantas pessoas, que corou, corou em pensar na maneira vil e indelicada de entregar seu corpo, como uma mala, um alforje pesado e antigo, sem qualquer serventia, se não carregar mentiras, a mentira era um presente, vingança por não sentir, entendia que era uma maneira branca de provocar no outro, a mesma raiva que o vazio lhe causava.
Aquele momento foi tão longo e penoso, mas necessário, não dava mais pra fugir de si mesma, do que tinha causado ao longo do caminho, enquanto acreditava ser apenas vítima, talvez seus amores não tenham descoberto, mas nunca foram até seu peito, paravam na cabeça e ali viravam peças de um imenso e interminável Xadrez, um xadrez de uma rainha, sem reis, sua estranha mania de se vilanizar em público, mesmo sem a audiência entender, fazer o quê, era hora de continuar seguindo, parou, olhou para o lado e viu que a rosa ainda era branca. Quanta decepção.
Seu cérebro, aquela maquina louca, cheia de peças quebradas, era uma antena, recebia o recado e retransmitia a mensagem conforme a conveniência, trançava as letras em uma dança livre, alegre, sentimental, triste conforme a próxima peça do tabuleiro fosse jogar, no entanto, as ondas em vão tentavam sair da cabeça e chegar ao coração, que luta inglória, que expedição improdutiva.
De repente foi tomada por outra história, essa sim lhe metia medo, havia feito uma promessa, não mentiria nunca mais, esta sem dúvida havia sido sua pior jura. Lembrou que conheceu alguém, achou engraçado lembrar e não sentir, mas aceitou a lembrança, o peito doeu, dor, que dor era aquela?
A garganta seca, boca seca, mão gelada, branca como a rosa, desconcertada como quando gozou, imóvel, em vão, tentou se levantar, não tinha respostas ainda, tampouco movimento, permaneceu tentando entender o que era aquilo que estava ali, fazendo o coração disparar. Novamente uma lágrima. Era molhada, quente, pesada e suave na essência, caiu o peão, o bispo, a torre, a rainha em xeque, conseguiu apenas dizer antes de mais nada: carinho.
Seu primeiro sentimento, o carinho, por aquele cavaleiro, Dom Quixote, tão perdido quanto ela, em sua loucura ou ingenuidade a fez dizer a verdade: "Eu não sinto", aquela lembrança do que disse, a tomava de tal maneira que apertou a rosa, apertou com tanta força, tão cega e assustada que a gota gorda de sangue pintou a flor.
Nesse exato momento ela voltou os olhos para a realidade, viu as pessoas no parque, sua mente calou, olhou a rosa com carinho e disse com o coração quase gritando: "Finalmente a rosa vermelha, sou a portadora da rosa vermelha!"
Se levantou devagar, faltava o ar ainda, se levantou sacudiu a roupa e sentiu, que na vida carinho valia mais que amor, essa palavra já estava gasta por demais, velha por demais, enquanto que a outra, essa fazia sentido, fazia sentimento, essa ocupou o primeiro lugar em seu coração, o lugar que nenhuma outra palavra antes se atreveu.
Sentir era lindo, era quente e macio, sorriu, o sol iluminou a rosa e a portadora de rosas vermelhas, assim ela se despediu do parque, assim ela começou a viver.