quarta-feira, 24 de abril de 2013

A crônica dos 30

Sempre me pego pensando em muitas coisas, talvez por isso esteja onde estou, acredito que o mal de quem pensa muito seja sempre realizar pouco, acredito nisso pensando sobre mim, em como encarei a vida até aqui e o que consegui conquistar, percebi que os passos de quem pensa muito sejam sempre muito vacilantes, inseguros e inundados de uma inquietação tendendo sempre ao menosprezo.
Quando olho em volta, comparo meus medos e desejos aos dos demais, eles são sempre dotados de um infeliz senso comum, maquiados por falsa erudição ou arranhados por uma falsa vaidade que resiste em aparecer sobre a máscara da novidade, não são, talvez tenha pensado muito.
Ainda menina, me lembro de estar sempre sentada em uma mesinha de madeira, dialogando com um boneco quase do meu tamanho, cantando Lobão, entrevistando, compartilhando meu gosto por Jorge Ben e música clássica, ai me lembro da minha mãe contando pra mim, na época com três ou quatro anos que o Jorge Ben era um desertor, traiu a pátria e foi embora, na verdade ela falava do Simonal, mas me lembro que traição foi uma palavra tão forte que só depois de vinte anos voltei a escutar novamente e achando a coisa mais maravilhosa do mundo, nessa época já estava com um cara e sentávamos noite a dentro pra ele tocar violão pra mim e dizer que a "a lua é minha aaa a lua é bela aaa". Ria daquilo e senti que a alegria tomava minha alma, enquanto ríamos da nossa falta de futuro juntos.
Voltando a época de criança, nesse mesmo lugar da mesinha de madeira, tinha minha avó, todos dizem que ela foi quem mais me amou, mas não me lembro do amor dela, me lembro que trair a pátria é ruim, mas não me lembro do amor de avó, aquele que tem cheiro de pão de queijo, de roupas de crochê e tudo limpinho, feito com carinho, percebi que eu não me lembro do amor, esse sentimento eu não consegui ouvir ainda, como a música do Jorge Ben, só me recordo de quanta falta ele faz.
Me lembro do abandono, trair a pátria é uma forma de abandono, você vai embora, porque quando se trai, não pode mais ficar, tem que se mover, sumir, talvez um dia volte, mas naquele momento, só te resta partir.
Não tive festa de quinze anos, tenho meia dúzia de fotos com minha mãe, não tive pai, mas ela me explicou que isso não faz falta, são convenções, eu sempre senti que isso era falta de amor, ela diz que amor é outra coisa, sei que não entendo o amor dela, ela também não entende o meu e assim eu caminhei.
O resultado é que pra mim, não pode haver traição, mas também tem que ter amor, demorei vinte anos pra perdoar o Jorge Ben, mas cheguei nos 30 sem amor, faltou arte, poesia, larguei a música aos três anos e comecei a roubar aqueles bloquinhos de depósito do banco com carbono (poucos vão se lembrar) e, fui brincar de escritório, parei de entrevistar o boneco e comecei a olhar as crianças de longe, sem me misturar, acho que tinha medo, de abandono, de confusão, a verdade, tinha medo de gente.
A gente sempre tem uma mania estranha de compensação, projeção, expectativa ou apego, seja qual for o nome, o resultado é o mesmo, tentativa de adequação, um talento que não tive, me adequei mal as frustrações naturais da vida, era medrosa, apegada a um sonho de Cinderela meio às avessas, não queria o príncipe do cavalo branco, queria mesmo o eternamente, ah! cresci ouvindo o soneto de fidelidade, mas sofria com a parte do seja eterno enquanto dure, pra mim, partir me partia e, foram tantas as partidas que aos trinta tenho um álbum de defunto no peito que cheira a saudade, mas na verdade é mesmo dificuldade de desapegar.
Agora, sufocada, sem espaço pra preencher com coisas novas, me vejo faxinando a casa, preciso jogar fora o que não cabe mais, tenho que criar coragem pra ser alguém além de solidão, velharia e peso, pra encontrar algo leve, novo, não porque quero, mas por sobrevivência, uma questão de vida ou morte literalmente, encontrar uma firmeza que teimo em achar que todos tem mais que eu, pra me manter de pé.
Devo admitir que as fotos que não tenho, a família que não tenho, talvez nunca tenha, me fazem falta, mas mesmo assim, terei que reconstruir outro sonho, esse ai, tá empoeirado de mais, quero agora minha mesinha e meu boneco, pra ouvir aquelas músicas, pra recuperar a arte e poesia e assumir meu papel definitivo, quero a criatividade de volta, a sensibilidade amorosa, o traço fino, a nota que comove.
Afinal, o mesmo peso que destrói, constrói, é uma questão de pensar menos e agir mais, por isso, acredito que quem pensa muito realiza pouco, nosso pensamento nos leva sempre ao irreal, a loucura, é muita sinapse junta pra pouco espaço de concretização.
Quero trazer aquela primeira criança de volta, esse é meu plano de ação, porque me comovia e era capaz de comover, imitava cantor de rock, contava piada, desenhava horas, cantava e era feliz mesmo sozinha, esses desejos continuam os mesmos, mas a coragem mudou, quando brinquei de escritório, o mundo ficou meio cinza e burocrático, talvez fosse mais promissor, mas agora, preciso mesmo é daqueles cadernos de cartografia com papel vegetal, aprender a desenhar e a me soltar, porque TEM que haver esperança novamente.
Chegar aos trinta, portanto, é assustador, mas pode ser também a oportunidade de ouro que a vida, por impaciência da sorte, de te dá de brinde para recomeçar.


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